Por Felipe Luchete via Conjur
Uma vez que já existem leis que punem maus tratos aos animais, os legisladores não podem proibir o sacrifício em cultos religiosos, pois isso representaria uma restrição à prática religiosa. Assim entendeu o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, por 20 votos a 4, ao declarar inconstitucional norma criada pelo município de Cotia (SP).
A Lei 1.960/2016 fixou multa de R$ 1.504 a quem utilizar, mutilar ou sacrificar animais em locais fechados e abertos, com finalidade “mística, iniciática, esotérica ou religiosa”. As pessoas jurídicas que promovessem as mortes seriam obrigadas a pagar R$ 752 por animal e poderiam perder o alvará de funcionamento.
A pedido de entidades religiosas do município, o Psol moveu ação pedindo que o texto fosse declarado inconstitucional. Uma liminar suspendeu a validade da regra em novembro de 2016, e o mérito foi julgado nesta quarta-feira (17/5).
O relator do caso, desembargador Salles Rossi, reconheceu a necessidade de se preocupar com animais, mas disse que prevalece no caso o livre exercício de culto. Segundo ele, a proibição é desproporcional, porque não há relatos de grande número de sacrifícios no município.
Já o decano do tribunal, Xavier de Aquino, disse que pouco importa a quantidade de animais mortos. Em voto divergente, ele declarou que a Constituição obriga a preservação da flora e da fauna, citou estudos sobre a sensibilidade dos mamíferos, aves e demais criaturas (apoiado por pesquisadores “notórios”, como Stephen Hawking) e afirmou que liberar sacrifícios esbarraria na dificuldade de fiscalizar como a prática tem sido feita. “Será que Deus deseja o sofrimento causado ao outro?”, questionou.
O desembargador Álvaro Passos disse que o debate não pode entrar na questão da fé das pessoas. A morte dos bichos é pano de fundo da controvérsia, afirmou, como alegar poluição sonora para fiéis que cantam alto em cultos. O problema, segundo ele, é que o município invadiu a liberdade de consciência e fé de cada um.
Enquanto o desembargador Ferraz de Arruda entendia que a lei não proíbe o culto, Moacir Peres declarou que é “nítido” o objetivo da norma de cercear o livre exercício religioso. Apesar de o caput falar também do uso de animais em pesquisas, os artigos tratam apenas de rituais. “Se houver, no curso dessa liberdade religiosa, alguma forma de maus tratos e sofrimento, que isso seja objeto de processo criminal”, afirmou Peres.
Repercussão
O julgamento teve início em 26 de abril, mas foi suspenso pelo próprio relator. A sessão desta quarta foi acompanhada por representantes de grupos de candomblé e umbanda, que se organizaram pela internet e por redes sociais — em número menor do que no primeiro dia, quando o Salão Nobre do TJ-SP lotou e parte dos espectadores teve de acompanhar o julgamento em um telão quatro andares abaixo.
Embora a norma fosse de apenas um município, representantes de movimentos entendem que a posição da corte paulista virou precedente relevante quando o Supremo Tribunal Federal julgar recurso com tema semelhante (RE 494.601, sobre lei gaúcha que permite o sacrifício, mas é questionada pelo Ministério Público).
O advogado Hédio Silva Júnior, que atuou no caso e é ex-secretário estadual da Justiça, declarou em sustentação oral que a norma de Cotia viola leis federais que já tratam de maus tratos contra animais.
Os autores da ação alegaram que nenhuma lei poderia presumir genericamente que todo sacrifício religioso envolve maus tratos. “Ao contrário do abate comercial, o abate religioso praticado por judeus, muçulmanos ou fiéis das religiões afro-brasileiras utiliza um método que acarreta morte instantânea e com o mínimo de dor — a degola”, afirmaram, em memoriais entregues aos desembargadores.